Para todos aqueles que irão começar o ensino clínico de fundamentos na área hospitalar que sentem que não estão preparados deixem que vos diga, muito provavelmente não estão, de todo. Mas a grande verdade é que raramente estamos. A vida não espera nem avisa. Temos de ser nós a estar atentos e despertos para tudo aquilo que ela nos tem para nos oferecer. Mas deixe-me dizer vos outra coisa: tal como um babuíno disse na série Bojack Horseman “As coisas vão ficando mais fáceis. Todos os dias as coisas ficam mais fáceis. Só as tens de fazer todos os dias e essa é a parte difícil.” E esta será a ideia que vos irá acompanhar ao longo do vosso primeiro ensino clínico.
Um aspeto a termos em conta é que todo esse nervosismo sentido é mais que perfeitamente normal. Primeiro de tudo vai ser o vosso primeiro contacto com a realidade da nossa futura profissão. E deixem-me que vos diga, não é uma realidade bonita, de todo. Vão perceber que muitos dos ideais apreendidos na escola não são correspondidos na prática. Porque as condições de trabalho não o permite. E vão perceber que estas mesmas condições de trabalho estão muito longe de serem as melhores. Lembro-me de perguntar aos enfermeiros se os mesmos não demonstravam descontentamento ao hospital quanto às condições do seu trabalho, ao qual me responderam “Nós demonstramos, mas como o nosso trabalho aparece feito à mesma, eles acreditam que as condições de trabalho são as suficientes”. E sim com isto vão perceber que os enfermeiros portugueses são mestres do desenrasque. Que existem tarefas que tem de ser feitas, independentemente das condições existentes. Confesso que isto tudo acabou por gerar uma certa revolta em mim, senti-me traído pela escola e pelo seu idealismo. Lembro-me que confrontei os meus professores na avaliação intercalar com estes meus sentimentos ao qual me responderam que como aluno não estava lá para fazer quaisquer juízos críticos e de valor, e que como tal teria de aprender o meu lugar. Que praticamente era um convidado do serviço e como tal o meu dever era aprender, observar e calar. Não mais. Não sei até que ponto estas respostas numa escola que diz valorizar o pensamento crítico acima de tudo foram as mais adequadas. E que esta minha abordagem não tenha sido nada favorável na minha relação com os mesmos e consequentemente na visão que eles tinham de mim. Mas sei que com isto aprendi a importância de termos ideais em mente, por muito que sejam impraticáveis. Por muito que estes sejam impraticáveis, devemos gerir e racionar os recursos disponíveis de forma a ficarmos o mais perto possível de o alcançarmos, porque desta maneira iremos garantir a melhor qualidade e prestação de cuidados possíveis.
Aprendi finalmente a dar atenção e a tomar conta de mim e do meu bem-estar, quer físico, quer psicológico, quer emocional. Percebi que não seria capaz de cuidar dos outros se antes não fosse capaz de cuidar de mim. E com isto fui começando a levar os meus padrões de sono e hábitos alimentares mais a peito. Sabia que tinha de estar nas devidas condições para ser capaz de dar o meu melhor.
Lembro-me da primeira vez que fiz uma avaliação da glicémia capilar, logo no início da segunda semana. Procedimento que atualmente considero das coisas mais básicas e simples de se fazer. O professor estava encostado à janela do quarto a observar e eu, eu tremia por todos os lados, tremia tanto que tive dificuldade em conectar a gota de sangue à tira de avaliação. Hoje em dia riu-me ao pensar nesse momento, na minha atrapalhação e no monstro que estava a criar na minha própria cabeça. De facto, a avaliação de uma glicémia capilar não tem mesmo nada que saber. Admito que na altura deixei com que o nervosismo tomasse o melhor de mim, o que também não foi saudável, de todo. Confesso que todos os domingos à noite durante o primeiro ensino clínico eu tinha um mental breakdown. Quanto a mim, enfermagem em Coimbra foi a minha 5ª opção, e na altura não tinha certeza nenhuma se era enfermagem que realmente queria. Sabia que queria vir estudar para Coimbra e sabia que queria ajudar os outros, na esperança que um dia fosse capaz de me ajudar a mim mesmo. Não sabia, no entanto, se esta tinha sido a escolha certa. O Ensino Clínico era um grande gerador de ansiedade e de stress para mim, tanto que me questionei várias vezes se devia continuar ou desistir de vez do curso. Não foram dias fáceis não, mas a cada semana a minha convicção foi crescendo. Questionei-me porque foi confrontado com a realidade. Foi obrigado a pensar, pesar as coisas na balança e tomar uma decisão. Estava completamente fora da minha zona de conforto. Mas hoje acredito que foram essas dúvidas e incertezas que me deram as forças necessárias para seguir em frente. Uma coisa é certo, foram estas perguntas todas que me puseram a mexer. E outra coisa também é certa “De que vale a pena nos arrependermos da única vida que alguma vez conhecemos, tivemos. A nossa própria vida”
Durante todo o ensino clínico chorei uma única vez. Lembro-me que trocava sempre de roupa no mesmo vestuário que as minhas colegas de estágio, e nesse dia demorei um pouco mais a vestir-me à espera que todas saíssem, para me sentar na cadeira a chorar que nem um desalmado. Nesse dia sentia-me mesmo no fundo do poço. Esse foi o dia onde tentei pela primeira vez colher sangue a alguém. Como estagiei numa neurologia dedicada a doentes que tiveram AVC's, a grande maioria dos mesmos era altamente depende e não demonstravam grandes sinais de consciência. Ou pelo menos era o que pensávamos. Alguns dos doentes, por muito que não falassem, seguiam-nos pelo quarto com os seus olhos, outros simplesmente passavam o turno aos gritos, gritos esses que nada nem ninguém conseguia acalmar. Eram coisas dolorosas de ser ver, de ser lidar. O senhor a quem eu estive para colher sangue, já com certa idade, estava cheio de hematomas e não aparentava estar consciente, mas ao mesmo tempo algo no seu olhar parecia-me dizer o contrário. Fiquei a olhar para ele com medo que o meu simples toque lhe fosse ferir aquela pele débil e frágil, causando-lhe mais dor que não lhe seria possível expressar. Consegui apalpar-lhe a veia radial, mas falhei no momento da introdução da a agulha, tanto que teve de ser o professor a assumir e a acabar o procedimento. No final, o professor disse-me apontando para o local da punção “Vês David, graças à tua hesitação conseguiste criar mais um novo hematoma no senhor” e realmente, ao ver o inchaço tinha criado no pulso do senhor senti-me mal comigo mesmo, juro que me senti. Caiu-me o mundo nesse dia. Então seria possível que o meu medo de magoar alguém fosse o que me levasse a faze-lo? E então passei o resto desse dia num conflito interno de "não quero magoar ninguém" e "tu vais sempre acabar por magoar os outros quer queiras quer não e tens de aprender que às vezes para os outros ficarem bem precisas de magoa-los primeiro, ainda por cima como enfermeiro". “Os hospitais são casas de dor e sofrimento” diziam os meus professores. Esse choro foi a interiorização dessa mesma afirmação e percebi que, se realmente quisesse seguir em frente com o ensino clínico, bem como a profissão de enfermagem, tinha de ser capaz de ultrapassar esse pensamento idealista e impossível de não magoar ninguém. A dor é algo devemos carregar e suportar no nosso coração, e como o nosso coração sente dor tão facilmente muitos acreditam que viver é sofrer. Quando no fundo se esquecem que a verdadeira razão do nosso sofrimento é a nossa própria individualidade. A separação que existe entre a nossa vontade e a nossa realidade. Esse foi um dos momentos que ganhei mais forças para terminar o ensino clínico e não desistir, vontade essa que só surgiu depois de ter passado por todo esse sofrimento. Um marco na construção da minha identidade profissional e, acima de tudo, pessoal.
E foram pequenos marcos como esse que me foram dando força para continuar, dia após dia, por muito que que o feedbackdos meus professores não fosse, de todo, o mais favorável. Foram as relações e os pequenos momentos que fui criando e passando com os doentes que me fizeram continuar. Quer fosse por metade das idosas do serviço dizer que me queria adotar como neto, enquanto a outra metade dizia que se tivessem a minha idade não sabiam o que me fariam. Quer fosse por estar cansado por ter dormido pouco na noite anterior, e, enquanto fazia uma cama de um senhor que não podia realizar levante, coloquei o resguardo da cama ao contrário. Pensei logo “Fogo, raios me partam, estou lixado!” ao qual o senhor, que já acompanhava há uns dias, me respondeu: “Não te preocupes com isso rapaz! Se alguém perguntar eu digo que sou eu me mexo muito na cama e isso saí do sítio!”. Pelo um senhor que tinha vindo diretamente de Maputo, capital Moçambique para ser submetido a uma cirurgia, que me contou ser presidente de um clube de futebol distrital que por acaso tinha vencido o campeonato nessa mesma altura. Mostrou-me fotos no seu telemóvel de um campo de futebol sem relva onde decorria um jogo, e onde, debaixo de um toldo sentando a fumar uma cigarrilha se encontrava esse mesmo senhor. Contou-me de como vivia sozinho numa vivenda com os seus 4 cães e como não se importava de viver assim, porque com os seus 57 anos tinha conseguido encontrar conforto na solidão que é a sua própria companhia. Senhor este que me convidou para partilhar o momento que iria ser fumar o seu último cigarro. Pela Enfermeira por quem rezava todos os dias para ficar, que disse à minha professora que acreditava que se eu não me perdesse, tinha todas as condições e competências necessárias para me tornar num excelente enfermeiro. E pela senhora do meu estudo de caso que acompanhei durante duas semanas, desde da sua chegada à sua alta. Tinha sofrido de um AVC isquémico, acabando por perder temporariamente as funções do seu hemicorpo direito. Confessou-me que se sentia nervosa e que sofria não tanto por ela, mas pelo marido e pelo seu cão que tinha deixado em casa. De facto, existem maneiras de chorar que são difíceis de entender, mas na mera tentativa de conseguir fazer algo disse que passaríamos pelo internamento os dois, juntos, e que a senhora poderia descarregar e partilhar todo o seu peso dor e sofrimento em mim, porque eu estava lá para ela e conseguiria aguentar com esse peso. Os dias foram passando. Um dia disse-me que se sentia aborrecida no internamento e que nada tinha para ocupar a sua mente. Como também já me tinha dito que adorava ler, no dia seguinte trouxe-lhe um livro, “A Lua de Joana”, sendo que a senhora acabou por sair do serviço sem me entregar o livro. Sei que nunca vou esquecer o sorriso da senhora no momento em que lhe entreguei o livro, tal como as suas palavras de agradecimento por tudo o que fazia por ela. Com o passar dos dias foi recuperando a sua mobilidade e com isto comecei a acompanha-la na fisioterapia que realizava todas as manhãs. Lembro-me de numa das sessões no ginásio da fisioterapia lá do hospital acabei por adormecer (não fosse eu Soneca), pelo que fui acordado pela fisiotepeuta chefe a dizer que como estagiário devia manter uma postura adequada e que com os estagiários dela isso era impensável, apontando para um rapaz que me olhava com um olhar de súplica. Ao voltar para o serviço a senhora disse-me “Tens que começar a ter mais cuidado contigo David, hoje vê se descansas bem. Mas não te preocupes, o que aconteceu fica só entre nós.” No dia da sua alta, a senhora, juntamente com o seu marido com quem, durante as suas visitas consegui estabelecer igualmente uma boa relação, vieram ter comigo a agradecer por todo o esforço e empenho que lhes tinha dedicado ao longo daquelas duas semanas, afirmando que apesar de estar apenas a começar o curso já lhes tinha mostrado sinais de um verdadeiro enfermeiro. Tudo isto foi me mostrando que seguir em frente era o caminho. Tanto que dias mais tarde, uma colega minha mandou-me mensagem a dizer que essa mesma senhora tinha estado no serviço dela e perguntou se alguém conhecia um estagiário de enfermagem David Santa Cruz, porque se tinha esquecido de entregar o livro, voltando mais uma vez a agradecer por tudo. É engraçado como realmente conseguimos mudar positivamente o dia de alguém com pequenas ações como aquela. Muitos desses momentos ficaram guardados apenas comigo mesmo, mas talvez seja por isso que lhe guardo tanto afeto. Sendo então os enfermeiros mestres na área de cuidar, acredito vivamente que realmente tudo isso se encontra nas nossas próprias mãos.
No fim um dos meus professores disse-me que acreditava que eu iria beneficiar imenso de repetir o ensino clínico, eu disse-lhe que discordava. Não seria ele que iria definir o meu valor como estudante, porque tive provas o suficientes ao longo do ensino clínico que realmente não estava num mau caminho, de todo. No fim lá consegui passar com 13,56 valores, em grande parte graças ao estudo de caso de 76 páginas que fiz e formatei de raiz num único documento em dois dias, no qual consegui tirar 15, nem sei bem como.
Sei que só consegui passar neste ensino clínico porque não desisti de mim, e das minhas capacidades. Sabia que se o fizesse aí sim ia tudo a baixo. Inicialmente não possuía as competências necessárias para conseguir passar, mas isso fui ganhando ao longo das semanas. Lembre-se que raramente estamos preparados, mas que isso não significa que não fiquemos, se nos dedicarmos. Não vai ser fácil, no entanto acredito que a única maneira de saber se realmente vale a pena é darmos tudo o que temos. E sabem que mais?! Não ouçam nada do que vos digo. De facto, não ouçam a ninguém e mais nada do que vos disserem sobre o assunto. Vão e tirem as vossas próprias conclusões, vivam as vossas próprias experiências e pensem por vocês mesmos. Não irei ser eu, nem mais ninguém a dizer como é que é suposto vocês se sentirem. Vão com tudo e lembrem-se: “Vai ficando mais fácil a cada dia que passa, só o tens de fazer todos os dias, essa é a parte difícil.” David de Santa Cruz, 4º ano
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