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Não sei o que vos dizer

Atualizado: 25 de mar. de 2022



Não sei o que vos dizer sobre esta situação. Nunca pensei que o meu último ano de Licenciatura fosse assim, tão anti-climático. Com uma sensação de realização tão inacabada. Por exemplo, finalmente tinha conseguido receber a autorização para voltar a fazer as noites de churrasco na residência. A sério David? Noites de churrasco? Sim! aaaah!! As noites de churrasco! Estas noites trazem-me à memória recordações tão boas do meu segundo ano de curso. O ambiente, a música, a comida e bebida e mesmo a própria aura de cada pessoa. Pode-me ser tudo demasiado subjetivo, mas parecia-me que Vénus, Marte e Júpiter se alinhavam sempre com as estrelas nessas noites. Pode parecer estranho que no meio de tantas coisas que Coimbra nos tem para oferecer, esteja a salientar logo este aspeto. Lembro-me que estes foram feitos na mesma altura que os nossos primeiros ensinos clínicos começaram e, como qualquer grande quinta-feira à noite, era a altura onde a malta se encontrava para pôr a conversa em dia, após mais uma aterrorizante semana de trabalho. Eram os convívios. Desde muito cedo no meu percurso académico que me foi incutido pelos pinguins, que o tesouro mais valioso que iríamos ter no fim do curso não era o diploma, mas sim as relações que estabelecemos com os outros ao longo destes quatro anos. E era devido a essas mesmas relações que queria voltar a ter uma oportunidade daquelas antes de terminar o meu curso. Assumo que o sentimento seja geral. Quando chegamos ao quarto e último ano da nossa licenciatura damos por nós a pensar que realmente não falta muito para tudo isto terminar. Que para muitos o sol de Coimbra é eterno, mas não dura para sempre. E é com essa noção de que o tempo está a andar e que o tempo é curto, que damos por nós a pensar em tudo aquilo que não fizemos, mas gostaríamos de concretizar antes de concluir o curso. Fazemos uma espécie de lista de “coisas a fazer” na nossa cabeça. Posso dizer que pelo menos a minha irá ficar incompleta. Estaria a mentir se dissesse que pouco me importa a abdicação da queima e da cartola, da própria cerimónia de graduação, momentos que seriam partilhados com todos aqueles que nos acompanharam ao longo do percurso, sendo que, certamente, as nossas famílias e amigos estariam lá também para nos ver e orgulhar. Vamos admitir que, mais tarde ou mais cedo, todos damos por nós a pensar e a idealizar como irá correr o dia destes eventos. Quem diria que não iríamos passar da sua idealização.

Às vezes dou por mim a pensar nesta situação toda e lembro-me das palavras da ativista ambiental Greta Thunberg. “Como se atrevem a roubar o nosso futuro!?” Isso é o que nós dizemos com a mesma expressão revoltada e punhos cerrados da Greta durante o seu discurso. Mas ao contrário dela, não dirigimos a nossas palavras para nenhuma figura, instituição ou governo político. Dirigimo-nos à pandemia da COVID-19, e como devem imaginar esta está um pouco nas tintas para aquilo que a gente quer ou deixa de querer. Quando nos queixamos e fazemos punhos cerrados à pandemia, estamos a fazê-lo para o ar. Toda a evolução da pandemia e as suas repercussões estão completamente fora do nosso alcance e controlo, enquanto indivíduos. São as grandes medidas coletivas e os seus esforços que predominam o espírito da população atualmente. E acredito que no meio disto tudo, exista muita gente que passa o dia com um sempre presente sentimento de impotência. Às vezes nem fazemos ideia daquilo que poderíamos estar a fazer para ajudar nesta situação, simplesmente a ideia de querer fazer algo soa muito melhor do que sentir que não podemos fazer nada. E é aqui que aprendemos: por vezes o melhor que podemos fazer é aceitar e seguir as indicações de terceiros. Por muito que gostemos de ter o controlo absoluto das nossas vidas, não somos capazes de alcançar os 100% e existem momentos que temos de depositar a nossa confiança e destino nas mãos dos outros.

Já li alguns livros que se centram em situações distópicas, como o 1984 de George Orwell ou The Handmais’s Tale de Margaret Atwood. Distopia é o oposto de uma utopia. Portanto, uma distopia é uma sociedade que vive sobre condições extremas de opressão, desespero ou privação. No nosso caso é a privação de que falo, por todos os motivos que estamos fartos de ouvir falar. Quer seja da privação daquilo que considerávamos a nossa vida “normal”, dos profissionais e das suas famílias, quer por todas as pausas que toda esta questão levanta. Já perdi a conta dos dias em que já estou por casa nesta situação. Honestamente, para manter a minha sanidade mental, cheguei à conclusão que prefiro nem os contar. Tenho saudades de viver aquilo que chamávamos uma vida normal, sem ter que me preocupar com tudo o resto. De me atirar para cima dos meus afilhados assim que os vejo, de ir beber aquele famoso “café” com aquele primo para meter a conversa em dia para algum sítio com uma vista bonita e de deixar a entrega dos trabalhos e textos para a última. De possuirmos todos um objetivo comum que nos fizesse cá andar. Tenho saudades do simples facto de poder. Para aqueles que ficam mesmo depois de eu ter ido embora, e para aqueles que estão para vir, deixem-me que vos diga. Considero que todos os choros, desagrados e dissabores, dores de cabeça e lamentos que possam ter ao longo do curso até acabam por ser um preço bastante plausível por cá andarem. Primeiro de tudo significa que estão vivos e imersos no mundo que vivem. Segundo porque tudo isso irá demonstrar que em momento algum das nossas vidas, tivemos a sorte e a oportunidade de cá passar. Que também nós vivemos aquilo que dizem ser Coimbra, e que para muitos de nós, significou ser a realização ou o começo de um grande sonho. Um pensamento que sempre tive bastante presente comigo mesmo de todos os anos em que cresci a vaguear nas ruas do centro de Lisboa, é que a cidade tem tudo aquilo que tu precisas, desde que tu estejas disposto a ir ter com elas. Acredito vivamente que em Coimbra esta observação não seja diferente. Coimbra deu-me tudo aquilo que eu quis que ela me desse, tudo aquilo que estive disposto a receber. E com isso, estarei eternamente grato por me ter enriquecido assim tanto a minha vida.

Esta é a minha última semana em Coimbra. Parte de mim tem-se recusado a partir, porque sabe que desta vez, partirei de vez. Claro que hei-de voltar a Coimbra, mas já não será como estudante. Irei sentir que esta vida estudantil já não me pertence. É a vez de outros. É assim que são os ciclos, não é verdade? Sempre ouvi dizer que existem alturas da nossa vida em que, se realmente queremos crescer e seguir em frente, temos de ser capazes de abdicar daquilo que mais estimamos ou nos faz mais falta. Sei que já abdiquei da cartola. Sei que já abdiquei do meu último ensino clínico no serviço que tanto sonho. Abdiquei até mesmo do churrasco. Mas sem dúvida alguma, o que me mais me custa de soltar da mão, de abdicar, é de ti Coimbra! Estes quatro anos, porque aqui passei todos os seus acontecimentos, todas as suas vivências, todas as pessoas que aqui conheci e estabeleci relação. Tenho a certeza que todos eles irão fazer parte dos meus maiores tesouros. Apesar deste final tão abrupto, podem ter a certeza que vos levo comigo… e acima de tudo, levo-te a ti, Coimbra! Por todos os novos caminhos que a partir de hoje me esperam pela frente.

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